Este foi um dos melhores livros que já li em toda a minha vida, na categoria romance. Sou fascinada pela literatura russa e dificilmente consigo gostar tanto assim de outros romances que não sejam de escritores russos. E de Saramago eu gosto tanto quanto, ou pelo menos, quase tanto. Não gosto de ler simplesmente para passar tempo, como quem assiste uma novela da Globo...O romance, para me despertar a atenção, tem que mexer comigo ou me levar à reflexão. E os livros de Saramago cumprem estas duas funções, essenciais para me atrair. E "Ensaio Sobre a Cegueira", de todos, foi o que mais me prendeu.
O livro, posso afirmar sem medo de ser exagerada, é cinematográfico, ou seja, você o lê com a sensação de estar assistindo a um filme: você "vê" os personagens, as cenas, de tão fantástica é a forma de narrar do autor. À medida em que você vai se prendendo à leitura, você vai "entrando" no livro, e tendo a sensação de estar participando das cenas, de ser um dos personagens, aquele que o autor não citou explicitamente, mas que está lá, sofrendo as mesmas dores e angústias decorrentes desta cegueira inusitada e branca. Ao fim da leitura, tive a sensação de ter estado cega, também. E quem sabe não estou presa daquela cegueira branca, de quem não vê as coisas como elas realmente são?
"Se podes olhar, vê, se podes ver, repara"
Esta epígrafe, como escreve Arthur Nekrovski na orelha do livro,
O enredo do romance gira em torno de uma epidemia de cegueira, diferente das cegueiras habituais, quando o cego vive na escuridão: nesta cegueira, o cego vivia numa brancura leitosa. Tudo começou quando um motorista, parado no sinal, subitamente se descobre cego, numa "treva branca", que vai se espalhar pela cidade, numa epidemia, que levará o governo a tomar a medida mais cômoda (como geralmente acontece com os governos atuais, alheios ao ser humano): decretar uma quarentena a todos os contaminados e aos que com eles tiveram contatos. Nesta quarentena, os cegos, "reduzidos à essência humana" vão viver na "verdadeira treva", pois só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são". Durante a quarentena forçada, os que conseguirem trazer à tona sua capacidade de solidariedade, que conseguirem abafar o egoísmo humano em prol da luta pela sobrevivência no inferno a que foram relegados, numa tentativa de reaprender a vida, conseguiram recuperar a lucidez e resgatar o afeto,"resume a empreitada do escritor, como de cada leitor.Não se trata só de reparar o significado das coisas, mas também de proceder à reparação do que foi perdido, ou mutilado - 'uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos'".
"tarefas do escritor e de cada leitor, face à pressão dos tempos e ao que se perdeu - 'uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos".
Saramago traça, alegoricamente, o que se passa nos tempos modernos, tempos de egoísmo, de ganância, consumismo, enfim, em tempos de falta de valores como o nosso tempo, quando o capital ocupa o lugar do Ser Humano, as necessidades do mercado estão acima das necessidades da vida, os políticos são omissos e, muitas vezes, sem moral.
"Este é um livro francamente terrível com o qual eu quero que o leitor sofra tanto como eu sofri ao escrevê-lo. Nele se descreve uma longa tortura. É um livro brutal e violento e é simultaneamente uma das experiências mais dolorosas da minha vida. São 300 páginas de constante aflição. Através da escrita, tentei dizer que não somos bons e que é preciso que tenhamos coragem para reconhecer isso." (José Saramago)
O livro é da Cia.das Letras, numa edição digna de Saramago. Com 310 páginas, custa R$ 46,00, mas fiquem de olho nas promoções, para isso use o www.bondefaro.com.br
Em 2008 virou filme,produzido pelo Japão, Brasil e Canadá, dirigido por Fernando Meirelles e vencedor do Prémio Nobel. O filme abriu o Festival de Cannes de 2008.