segunda-feira, 27 de maio de 2013

Um Homem que Dorme, de Georges Perec: comentários sobre o livro e filme online

 
Finalmente, consegui ter acesso a este livro, comparado por alguns a  Oblómov, do russo Ivan Gontcharóv. Procurei muito e só o encontrei na Livraria Loyola, em tradução para o português de Portugal. Livro fininho, 101 páginas, editado pela Editorial Presença, de Lisboa, em 1991. Mas a busca valeu a pena. Li o livro e gostei bastante. 

Se a leitura de Oblómov  foi um choque, como já tive oportunidade de relatar em post neste blog, Um Homem que Dorme não chegou a me atingir a este ponto, me "nocauteando" e me fazendo rever posturas e comportamentos, mas me incomodou muito, o tempo todo.  Isto porque Perec , nesta obra, monologa com o leitor do princípio ao fim. O leitor, em última análise, é o verdadeiro  homem que dorme e isto incomoda!

Trata-se da história de um jovem estudante de sociologia que decide suspender o curso de sua vida, se refugiando em seu pequeno quarto, indiferente a tudo, alheio a vida. Não que ele deixe de sair do quarto. Ele sai, vai a casa dos pais, circula  por toda Paris, mas a impressão que nos passa é que, mesmo estando de olhos abertos, ele dorme e delira, tamanha é sua indiferença pelo mundo: 
"Andas por aí, inventas uma classificação para as ruas, os bairros, os prédios: os bairros loucos, os bairros mortos, as ruas mercado, as ruas - dormitório, as fachadas peladas, as fachadas corroídas, as fachadas enferrujadas, as fachadas mascaradas".
ou, ainda: 
"Nos Jardins do Luxemburgo, observas os reformados que jogam ao bridge, à bisca ou ao tarot. Num banco perto de ti, um velho mumificado, imóvel, de pés juntos, com o queixo apoiado no punho da bengala que segura com as duas mãos, olha o vazio à sua frente, durante horas".
 O estudante é um solitário, mas ele é você, e você dá de cara com a sua própria solidão, sua e de todos os que vivem em grandes centros. É a obra do solitário, o romance da solidão urbana.

Com uma técnica constrangedora e repetitiva, Perec vai descrevendo e relacionando objetos, lugares e pessoas que compõem o universo em que vive o estudante, com minúcias e detalhes. Faz um inventário de seus parcos bens: três pares de meias boiadas numa bacia cor de rosa, duas camisas, um cinzeiro,um maço de cigarros marca Gauloises, que custa 1,35 francos, uma tigela de Nescafé adoçado com leite condensado e açúcar,  o livro "Leçons sur la societé industrielle", de Raymond Aron, aberto na página 112, o "Le Monde" , uma caixa de fósforos de 0,20 francos e por aí afora. 

Os detalhes da mansarda também são minuciosos e repetitivos, desde a gota d'água pingando, à banqueta que serve de cama, à iluminação do quartinho, até aos ruídos da rua ou os pigarros do vizinho, tudo é objeto de minúcias e detalhes. E estes detalhes, aliados à técnica narrativa sempre na segunda pessoa, vão te jogando em cena, é de você que Perec fala. E você se sente na pele do estudante, jogando cartas no auge da solidão e do desinteresse:
"Muitas vezes jogas às cartas sozinho. Dás as cartas para uma partida de bridge, tentas resolver os problemas publicados todas as semanas no Le Monde, mas és um jogador medíocre e os teus lanços não possuem elegância: nas sabes do squeeze, dos descartes, das passagens de mão. Uma vez imaginaste uma distribuição excepcional"(...)
 e passa a descrever, em detalhes, como seria tal jogada. 

Se Oblomóv era o retrato da decadência da nobreza russa, o estudante de Perec é o retrato de alguém deslocado na sociedade, para quem a vida perdeu o significado, o mundo se tornou um perigo e o isolamento do seu pequeno quarto oferece  refúgio e segurança. É a cara da depressão, que hoje em dia leva tantos ao analista. Oblómov é o coadjuvante ideal para tratamentos de depressão; o livro de Perec, ao contrário,  é contraindicado para deprimidos.

Mas, no final, vem o lado positivo, quando  o estudante faz o caminho de volta à vida, de uma forma meio que sartriana: você não se livra da história, você faz parte dela, não tem como fugir.
 
 "Aí refugiado, alheia-se de tudo; adormecendo, o mundo torna-se-lhe indiferente. Mas neste jogo doloroso, povoado de fantasmas, o jovem estudante é derrotado. O mundo, com todas as suas exigências, não o esqueceu, obrigando-o a acordar."


E eu,lendo o livro no meu quarto,como o estudante, tive um alívio estranho ao terminar a leitura.  Acordei para o mundo. Saí do quarto. Fui viver, como uma verdadeira personagem de Perec.

Findo o post, duas observações:

1- Um pouco sobre o autor:

 

Nasceu em 1936 e foi um dos grandes inovadores da literatura no século XX. Filho de judeus poloneses que imigraram para a França, perdeu o pai na frente de batalha, durante a Segunda Guerra, e a mãe num campo de concentração. Em 1965, recebeu o prestigioso prêmio Renaudot por As coisas, seu primeiro romance, e, em 1967, passou a integrar o centro de literatura experimental OuLiPo (Ouvroir de Littérature Potencielle), fundado por Raymond Queneau. Sua prosa extremamente lúdica recorre à lógica e à matemática para lançar uma luz surpreendente sobre os detalhes mais repetitivos das sociedades de consumo. Perec morreu em 1982.

2 - O livro virou filme homônimo, que você pode assistir pelo Youtube. Se a sua leitura já me deu a sensação de estar sendo submetida a um processo hipnótico, o filme  me deu quase que certeza de estar sendo hipnotizada. E, literalmente, foi o que aconteceu comigo: Perec, simplesmente, me hipnotizou!



Fontes:
http://www.companhiadasletras.com.br/ 
www.youtube.com
http://www.versobooks.com/

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